Os Corvos (Rua das Farinhas)
Falando de santos cumpre falar de São Vicente que está na Sé e que só viu Lisboa com os olhos de morto. Dever é dever, e este mártir, apesar de muito espanhol, até ficou ligado ao brazão do nosso Município por causa de certas fábulas do destino.
São Vicente, está provado, entrou no Tejo em cadáver navegante sob a guarda de dois corvos. Já ressequido e mirrado, acrescente-se. Já relíquia de sacrário, boca roída, dentes de fora. Chegou nessa figura e, embora santo, não teve uma palavra para a cidade que o recebeu. Sem um obrigado nem um ‘Dominus tecum’, recolheu à catedral como quem recolhe a uma fortaleza e, deserto, todo com ele, ficou-se a deixar correr os séculos por cima do seu cadáver.
Os corvos não. Os corvos, depois de uma viagem tão vigilante, mal se apanharam em terra puseram-se aos pulinhos para desentorpecer e, metendo por becos e travessas, entraram logo em convivência. Dentro em pouco já se tinham multiplicado em legiões de pássaros de taberna que eram um gosto de apreciar. Dois dos mais antigos vadiaram por tão longe e por tais sítios que no ano de 1630, vem nos livros, passaram as portas da cidade e chegaram à Bica de Arroios. Arroios, imagine-se. Um arrabalde de degredados, naquela época. Cheios de à-vontade, os dois aventureiros mataram a sede, descansaram, e para assinalarem o acontecimento gravaram a sua imagem na pedra do chafariz como um padrão de exploradores. Portuguesíssimos, estes pássaros.
Mas embora com um ou outro desvio para espairecer, nos bairros da capital é que os corvos propriamente corvos faziam vida. Pátio do Corvo, em São Vicente de Fora, Rua do Corvo às Escadinhas de Santo Estevão, Terreiro do Corvo, na Sé – como se vê, o mapa municipal assinala-os ainda hoje em personagens de respeito. Tão de respeito que Júlio Pomar pintou um deles lado a lado com Fernando Pessoa, e com toda a legitimidade porque se trata de dois lendários de Lisboa. (...)
José Cardoso Pires
Falando de santos cumpre falar de São Vicente que está na Sé e que só viu Lisboa com os olhos de morto. Dever é dever, e este mártir, apesar de muito espanhol, até ficou ligado ao brazão do nosso Município por causa de certas fábulas do destino.
São Vicente, está provado, entrou no Tejo em cadáver navegante sob a guarda de dois corvos. Já ressequido e mirrado, acrescente-se. Já relíquia de sacrário, boca roída, dentes de fora. Chegou nessa figura e, embora santo, não teve uma palavra para a cidade que o recebeu. Sem um obrigado nem um ‘Dominus tecum’, recolheu à catedral como quem recolhe a uma fortaleza e, deserto, todo com ele, ficou-se a deixar correr os séculos por cima do seu cadáver.
Os corvos não. Os corvos, depois de uma viagem tão vigilante, mal se apanharam em terra puseram-se aos pulinhos para desentorpecer e, metendo por becos e travessas, entraram logo em convivência. Dentro em pouco já se tinham multiplicado em legiões de pássaros de taberna que eram um gosto de apreciar. Dois dos mais antigos vadiaram por tão longe e por tais sítios que no ano de 1630, vem nos livros, passaram as portas da cidade e chegaram à Bica de Arroios. Arroios, imagine-se. Um arrabalde de degredados, naquela época. Cheios de à-vontade, os dois aventureiros mataram a sede, descansaram, e para assinalarem o acontecimento gravaram a sua imagem na pedra do chafariz como um padrão de exploradores. Portuguesíssimos, estes pássaros.
Mas embora com um ou outro desvio para espairecer, nos bairros da capital é que os corvos propriamente corvos faziam vida. Pátio do Corvo, em São Vicente de Fora, Rua do Corvo às Escadinhas de Santo Estevão, Terreiro do Corvo, na Sé – como se vê, o mapa municipal assinala-os ainda hoje em personagens de respeito. Tão de respeito que Júlio Pomar pintou um deles lado a lado com Fernando Pessoa, e com toda a legitimidade porque se trata de dois lendários de Lisboa. (...)
José Cardoso Pires
Os corvos e o céu
ResponderEliminar"Os corvos afirmam que um só corvo poderia destruir os céus. E sem dúvida assim é, mas o facto não prova nada contra os céus, porque os céus não significam mais do que a impossibilidade dos corvos".
Franz Kafka
Reflexões sobre o pecado, a dor, a esperança e o verdadeiro caminho (1917-19)
Eis, presumo, um belo comentário ao seu (dele) Júlio Pomar, de 1981.
RpM
Só mais uma nota, e que me desculpe o José Cardoso Pires - que já lá está na terra da verdade - que um dia nos há-de engolir a todos: nasci em Sº Jorge de Arroios...
ResponderEliminarE também já tive corvos. O meu falava e imitava o cão
Best
RpM
Isabel
ResponderEliminarApareceu!
Quatro dias é muito tempo, assim não pode ser, tens de reclamar.
Este texto está excelente. Eu não sabia desta história e corvos mesmo só os via estilizados nos postes de iluminação do parque das nações.
o que será feito da caracolinha?Já não era tempo?
Um beijinho
Já vi que aos poucos estás a voltar...
ResponderEliminarAinda bem porque estava aborrecido pela tua ausência
Beijocas
Não comentei o texto porque não morro de amores pelo tio Pires...gostos de mocho vamos lá entender
ResponderEliminarBabinhos gordos
Caro Rui,
ResponderEliminarSem dúvida um belissimo comentário ao trecho do livro do Cardoso Pires.
Com que então nasceu em 'terra de degredados'?
Quem diria! :)
Um []
Caro Rui,
ResponderEliminarquando eu era criança ía com a minha avó às compras ao Bairro Alto e lembro-me do 'Vicente', um corvo de uma 'tasca' no cimo da Travessa da Queimada.
À época, o trânsito era reduzido na zona e o 'Vicente' andava livremente na rua.
Mas onde vi mais corvos foi em Varsóvia. Bandos imensos que esgravatavam na neve num mês de Março com quinze graus negativos.
Chamam-lhes 'Verona'... segundo me disseram quando perguntei. :)
Outro []
Querida Laerce,
ResponderEliminarReclamei sim... três vezes, por telefone.
Quanto ao 'Lisboa, Livro de Bordo' é o melhor roteiro da cidade de Lisboa, profusamente ilustrado com telas e desenhos dos nossos melhores artistas.
Não é só no Parque das Nações que os candeeiros de iluminação pública têm corvos... se reparares bem, há-os em muitos outros locais. :)
Quanto à 'caracolinha', não sei. Tb fiz a pergunta ao 'Mocho' mas ele não viu, certamente.
Um beijinho. :)
Caro Buddha,
ResponderEliminarmuito obrigada pelas palavras...
eu gosto muito da minha cidade, além de nutrir por São Vicente de Fora um carinho muito especial.
Resta dizer que sinto um enorme fascínio por histórias... :)
Um []
Querido Mocho,
ResponderEliminarpronto... ok... não gostas do Cardoso Pires!
Desde que gostes de mim...! :)
Quanto à ausência, tenho andado 'FURIBUNDA' com a netcabo...
Um beijinho com o ego inflamado. (eu vi o comentário no blog da Laerce) :)
Isabel,
ResponderEliminartexto interessante este que transcreves. o corvo é o simbolo lisboeta, creio.
lembrei-me do 'Vicente', do Torga :)
beijinhos, bom fds.
Sim, Musa...
ResponderEliminaro corvo é o símbolo da cidade de Lisboa. :)
E 'Vicente' é nome de corvo. :)
Bj. Bom fim de semana tb.
O LIvro de Bordo é imperdível, são verdadeiros passeios pela minha cidade.
ResponderEliminarNasci em Campo de Ourique mas depois vivi longos anos em Arroios!
Um belo texto de José Cardoso Pires sobre o símbolo da cidade de Lisboa. Não se vêem muitos corvos em Lisboa, no entanto... :) Beijos
ResponderEliminarCara Helena,
ResponderEliminarO Livro de Bordo é um dos meus livros de cabeceira. Porque é um excelente roteiro, porque nos conta histórias da minha cidade e das pessoas que a povoam e/ou povoaram.
Nasci em São Bento, freguesia de Santa Catarina, e numa muito tenra infância fui viver para os Restauradores, freguesia de Santa Justa e Rufina. Na minha santa ingenuidade de criança queria - porque queria - que a minha freguesia se chamasse de São Domingos. :)
Um abraço.
Olá água-quente,
ResponderEliminaré um facto, não sei que lhes fizeram, no entanto, gostaria de saber
Aqui na minha zona - mata do Jamor - há cada vez mais melros, que já vêm pousar nas varandas e disputam com os pardais as migalhas atiradas ao vento.
Um abraço, volta mais vezes.