Cansaram-se os olhos da senhora Rosa. E, cansados os olhos, as mãos já não trabalham. Arrumou o tear - que, em casa de tecedeira, é a última coisa a desarmar - e desistiu.
Durante anos a fio, sem parança, urdiu as teias e, com tiras de trapos velhos, fornecidos pelos clientes ou comprados ao quilo, mais algodão e lã teceu mantas.
Usavam-nas, conforme calhava ou, melhor dizendo, ao gosto do freguês, nas camas como cobertas (e mesmo cobertores,) no chão, como tapetes cobrindo o solho esfregado, asseado, amarelíssimo do sabão utilizado, conforme o costume das gentes vareiras e murtoseiras. Por vezes, usavam-nas também, estranha função, como panais no fabrico de roscas doces.
Anos a fio, na sua casa da Ribeira, a senhora Rosa foi tecendo. (Aprendi a tecedeira, / donde estou arrependida, / passa o amor na rua, / e eu na prisão metida.) Uma vida. O que resta desse lavor é esta imagem. E nada mais. Além de algumas, poucas, mantas, velhas, desbotadas e desfiadas de que, um dia destes, já ninguém recordará a origem. (Salvo os Museus - se os houver para guardar as lembranças das terras e das suas gentes.) Uma vida. Uma caminhada que chegou ao fim, e mais uma oficina perdida na voragem onde as tradições artesanais se vão consumindo. No caso da senhora Rosa, não tece nem há tear, por aqueles dois motivos e mais um: a inevitável condição de envelhecer, deixar de ver e perder a mão que urdia a teia. E tecia, tecia, tecia.
Foto: Ribeira (Ovar) 1977
in Nós Portugueses
Helder Pacheco
Tenho dessas mantas... mas hoje apetece-me enaltecer um sorriso, o teu!
ResponderEliminarAté outro instante
Cheers
È sempre bom reviver essas tradições populares portuguesas.
ResponderEliminarParabéns!
E mais uns tempos e todas estas ancestrais artes desaparecerão. Umas não farão falta, até pelo trabalho que davam e a prisão a que eram obrigados os seus artificies conforme revelam as palavras da senhora Rosa, mas outras, que se poderiam manter, também irão pelo mesmo caminho e restar-nos-á, no fim, a carolice de alguns, que teimarão em nos mostrar como era.
ResponderEliminarMas é assim, esta marcha no progresso e na globalização, em que marchamos bem juntinhos e alinhados, embora não sabendo para quê.
Gostei de mais este pedaço da história que há-de ser, porque, quando dermos por isso, já foi.
Abraço.
Boa noite e bjinho.
ResponderEliminar:)
ResponderEliminarpara além das colchas de croché feitas por ambas as avós, lençóis bordados, toalhas de Viana do Castelo...
e cousas tais (que não sou muito dada a essas coisas mas tenho tudo isso... )
boa noite!!
obrigado(a) ,Isabel ,por este post
ResponderEliminarnele está a nossa memória colectiva onde se enquadram os registos e onde sobressai a sensibilidade de quem os escreve ,descreve ,fotografa e publica.
sabe muito bem esta Nação menina.
no meu local de trabalho estes e outros registos são o meu dia a dia
por isso ,não tenho dúvidas ,sou um(a) privilegiado(a)
Os anos deixaram-lhe dores
ResponderEliminarNos dedos grosados na água
De lavar a loiça cansaço
De quem educa netos
Às portas da lua bebendo
Café com nossa senhora..
É a avó do meu amigo sem nome
Emoldurada nas teias dum armário
Peça arqueológica espólio de fome
Herança inscrita nas páginas
Dum inventário.
PS: Excelente blogue. Obrigado!
PAULO
Excelente imagem do Portugal profundo, onde certas tradições vão passando e outras se perdem sem que esteja assegurado pelos museus a preservação dos legados das gentes e das regiões!
ResponderEliminarE tantas donas Rosas há por aí!!
Saudações infernais!
O mundo mudou tanto ...
ResponderEliminarA horrorosa globalização ...
Dei por mim a pensar na palavra "colcha" !!!
Já quase nem existe a palavra !!!
Lindos os hábitos, manuais , antigos, do quotidiano !
tecemos a vida.
ResponderEliminarBelíssima a memória.
Sabia bem.
abraço!
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Olá a todos;
ResponderEliminar'Santa' unânimidade; nem uma voz discordante... isto assim fica monótono! brinco, claro. registo com agrado que partilham do que sinto.
Tive a sorte de ser aluna de um "Homem" que me ensinou a conhecer, diferençar e apreciar o artesanato do meu país. Chamava-se Tomaz Ribas e entre muitas outras coisas ensinava Etnografia e Folclore.
A propósito, sabem se a Senhora Ministra da Cultura sempre vai levar avante a decisão de encerrar o Museu de Arte Popular, em Belém?
(é que o pensamento não deixou de estar presente enquanto transcrevi o texto e 'atormenta-me' desde que tomei conhecimento da notícia).
Obrigada pela v/visita.
Uma boa noite.
I.
A vida sem cor era uma chatice, e tu saberás isso muito bém, o preto e branco são neutros só servem mesmo para fazer número tal como nós que estamos transtornadamente cinzentos neste tecer, tecer, tecer sem fim de acabar o seu tear... Envelhecemos a cada segundo sem darmos conta daquilo que não fizemos...
ResponderEliminarDeixo um beijo meu
o T. Ribas era um recolector....do muito que este país tinha/tem...
ResponderEliminar________________
boa Noite....
beijo.
eu não acredito!!!!
ResponderEliminara Isabel foi aluna do meu queridíssimo Amigo Tomaz Ribas?
(ele começou por ser amigo do pai )
mais tarde ,o Tomaz e eu ,tivemos a oportunidade ,não só de partilhar uma profunda amizade ,como de trabalhar juntos ,quando ele esteve na Delegação de Cultura do Algarve ... e tenho um trabalho publicado em que ele ajudou.me imenso no que respeita ao "Estravanca" ,que é uma dança de índole guerreira ,oriunda da Região de Silves ,hoje recuperada ( e a ele se deve ) no folclore concelhio.
era uma pessoa especialíssima.
tinhamos em comum para além de um profundo amor pela Cultura e pelos cães,( ele a mulher )( eu o nome dela )
um beijinho e bom fim de semana
Olá al-gib, bom dia! :)
ResponderEliminarPois o Mundo é muito pequeno e Portugal são três assoalhadas.
Fui aluna do Tomaz Ribas na Escola de Turismo de Lisboa no ano de 1970/71. Era, realmente, uma pessoa especialíssima, um professor que prendia a atenção pelo muito que nos dava e com quem era fácil fazer amizade.
Por motivos profissionais nunca nos perdemos mesmo durante os anos que esteve em Faro. No fim da década de 70 - se não estou em erro - estive uns dias no festival do filme turístico do Algarve e o Tomaz fazia parte do Juri. Foram uns dias de alegre convívio e foi tb aí que conheci a Gabriela, que nos acompanhou sempre durante os dias do evento e os jantares que se lhe seguiam.
Mesmo em férias e sempre que possível não deixava de o visitar. À época tinha ele dois belos exemplares de 'Basset Hound'...
A ele recorri algumas vezes para tirar dúvidas de assuntos ligados à Etnografia e Folclore.
Deixou saudades como professor e como amigo.
Um beijinho e bom fim de semana.
(Gostei especialmente deste seu comentário.)